O Cinema, uma arte sonora
Resenha que escrevi do livro "O Cinema, uma arte sonora", de Virginia Flôres.
A representatividade da literatura brasileira sobre o som no cinema sempre fora questionada devido à pouca quantidade de materiais publicados. Porém, o interesse em estudar o som cinematográfico vem se expandindo de forma considerável, principalmente nos primeiros anos do século XXI, quando se inicia a consolidação dos Estudos do Som no Cinema (Film Sound Studies) no Brasil. Consolidação esta proveniente essencialmente de pesquisas acadêmicas as quais privilegiam o som como objeto central de estudo e que, por ventura, conseguem um espaço editorial para sua publicação. O exemplo mais recente disso é o livro O Cinema, uma arte sonora, originado da dissertação de mestrado de Virginia Flôres e que muito colabora para o enriquecimento dessa literatura em expansão no país. Vale destacar que Virginia Flôres, além de professora doutora, é editora de som e montadora cinematográfica, possuindo vasta experiência em longas-metragens.
O livro inicia-se contextualizando e criticando discursos de análises cinematográficas que elegem a imagem visual como única e hegemônica forma de percepção fílmica. Por meio de três tópicos que dividem o primeiro capítulo, a autora demonstra a competência e o dinamismo do elemento sônico na relação audiovisual no cinema, sempre se utilizando de exemplos fílmicos esclarecedores. Indo além da simples associação de sincronismo entre imagens e sons, o primeiro tópico – “A exclusão do som no cinema” – defende a representatividade e materialidade do som, digno de ser percebido como objeto narrativo e dramático nos filmes. Conceitos como os de méthode des caches, le bruit du pois e valor agregado, todos elaborados pelo renomado teórico Michel Chion, enriquecem as argumentações expostas. O segundo tópico – “A exclusão do som na música” – trata de questões mais específicas interiores ao universo sonoro, expondo o quanto a teoria e a análise musical em geral também rejeitaram o som. Neste momento, são introduzidas as primeiras ideias acerca do músico e teórico francês Pierre Schaeffer e seu Traité des objets musicaux, as quais se tornarão a base para o desenvolvimento do livro. Já o terceiro tópico do primeiro capítulo – “Divergências e convergências: o editor de som e o compositor” – levanta semelhanças e diferenças entre a elaboração de uma trilha sonora e a composição de músicas eletroacústicas, tanto contextualizando este último tipo de música quanto evidenciando modos de construção da trilha sonora de um filme.
O segundo capítulo, o qual leva o nome traduzido de sua principal obra de referência – “O tratado dos objetos musicais” –, dedica-se exclusivamente à interpretação das ideias mais significativas de Pierre Schaeffer, discorrendo sobre “como o autor chegou a diferenciar os sons e as escutas, sua fundamentação teórica baseada na fenomenologia de Husserl e os resultados alcançados no trato específico com a matéria sonora: sua tipo-morfologia dos sons”. Ou seja, a percepção sonora ganha então destaque a partir da exploração e compreensão de conceitos como o de objeto sonoro e dos modos de escuta, auxiliados pela apresentação de alguns pontos da fenomenologia de Husserl. Ao final do capítulo, sete critérios de classificação sonora são expostos para um melhor entendimento das qualidades dos sons; são eles: massa, timbre harmônico, grão, allure, perfil dinâmico, perfil melódico, perfil de massa. Tudo isso para beneficiar uma futura análise estética da trilha sonora cinematográfica.
O terceiro capítulo traz o levantamento de algumas maneiras como os sons costumam ser utilizados em relação à imagem no cinema. Para isso, quatro exemplos foram trilhados. O primeiro está relacionado conforme o “fluxo sonoro” do filme e é retratado a partir de amostras de escolhas estéticas de diretores como Jacques Tati, Jean-Luc Godard, Júlio Bressane, Roberto Santos, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, articulando conceitos como os de lógica interna e lógica externa de Michel Chion, e modos de unificação desse fluxo de sons. O segundo exemplo é o uso do som com um sentido simbólico. Uma cena do filme O milhão (Le million, René Clair, 1931) é analisada para ilustrar esse tipo de construção audiovisual. O som como pontuação – seja ela semântica, narrativa ou dramática – é o terceiro exemplo mencionado. Desta vez, sequências dos filmes A morte passou perto (Killer’s kiss, Stanley Kubrick, 1957) e Os 39 degraus (The 39 steps, Alfred Hitchcock, 1935) demonstram essa outra maneira de utilização do elemento sônico. Aqui, a autora traz também o silêncio como forma especial de pontuação. E o último modo exposto é o do som como retórica, decifrado a partir de trechos de filmes como O grande golpe (The killing, Stanley Kubrick, 1956), A noite (La notte, Michelangelo Antonioni, 1961), Sob os tetos de Paris (Sous les toits de Paris, René Clair, 1930), Pépé-le-Moko (Julien Duvivier, 1937), 2001, uma odisseia no espaço (2001, a space odissey, Stanley Kubrick, 1968) e Dias de Nietzsche em Turim (Júlio Bressane, 2000).
Ainda neste capítulo, o som no espaço diegético é analisado diante de seu potencial de representação naturalista e abstrata. E, também, em relação a seus modos mais frequentes de se posicionar em relação à imagem nesse espaço. A autora utiliza-se de outra diversidade de exemplos fílmicos para abordar questões de sincronismo e de perspectiva sonora, os quais são discutidos sempre de acordo com as escolhas estéticas e técnicas. O resgate
de diversos comentários e observações de teóricos como Noël Burch, Henri Agel, Gilles Deleuze e Michel Chion dão forte embasamento para o texto.
Ao final do terceiro capítulo, é proposta uma fragmentação dos elementos que compõem a trilha sonora fílmica a fim de auxiliar o entendimento de suas possíveis formas de estruturação. A categorização empregada baseia-se na metodologia adotada pela editora de som francesa Emmanuelle Castro, que trabalhou no Brasil no final da década de 1970. Os elementos são, então, classificados em vozes, músicas e ruídos (ruídos de sala, efeitos especiais sonoros e ruídos de pista ou de arquivo), incluindo o que a autora prefere denominar de “cenografias sonoras”, ou seja, os sons que compõem o ambiente da cena.
O quarto e último capítulo dedica-se às formas de recepção sonora no cinema. Novas reflexões acerca da escuta fílmica expandem as possibilidades de percepção e apreciação audiovisual discutidas. Para elucidar o raciocínio trilhado ao longo de toda a obra, trechos da trilha sonora dos filmes Blow up – Depois daquele beijo (Blow up, Michelangelo Antonioni, 1967), Um tiro na noite (Blow out, Brian de Palma, 1981) e O pântano (La ciénaga, Lucrecia Martel, 2001) também são analisados.
O livro de Virginia Flôres pode ser considerado uma obra que expande as possibilidades de criação audiovisual no cinema através da valorização do potencial do uso do som nos filmes e, também, instiga o leitor a conhecer possibilidades mais elaboradas de percepção fílmica. Torna-se, assim, leitura essencial para pesquisadores, profissionais, estudantes e admiradores da arte cinematográfica.